A cruz! Marca do cristão, sinal identificador do cristianismo. Seu significado é múltiplo e perturbador…
A cruz, sinceramente falando, perturba, amedronta, confunde, causa admiração! Não, meu Leitor! Nem pense que estou aqui, nestas linhas, fazendo discurso com estilo para parecer belo. Nada disso! Falo sim, com o coração na mão, perturbado…
A Escritura nos diz que “visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar os que creem” (1Cor 1,21). Não devemos brincar com tais palavras. Elas são tremendas! São um desafio, uma bofetada no nosso rosto, no meu rosto…
Primeiramente, afirma-se que o mundo, com sua soberba, somente olhando a sabedoria que Deus manifesta na Sua criação, não tem sido capaz de reconhecer a Deus. De fato: o Eterno deixou Sua lógica inscrita na criação e o homem deveria ser capaz de reconhecê-Lo. O próprio Jesus, Sabedoria do Pai, havia dito: “A Sabedoria foi justificada por Suas obras” (Mt 11,19b). Na verdade, a inteligência humana, quando humilde e retamente intencionada, pode vislumbrar algo do Criador nas criaturas: pode perceber Seu poder, Sua sabedoria, Sua bondade (cf. Rm 1,19s). Mas – e o nosso tempo é testemunha da triste realidade –, o homem, na sua soberba, encharcado de autossuficiência e presunção, não reconhece Deus na criação. Pelo contrário: jactando-se pelo relativo domínio que a técnica lhe proporciona, julga poder dispensar Deus, julga-se ele mesmo um deus. Tem sido sempre assim… (cf. Rm 1,21-32).
A Escritura, então, afirma que “aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar os que creem”. Em outras palavras: somente abrindo os ouvidos ao Evangelho que é anunciado, que lhe vem de fora como novidade inesperada e surpreendente, o homem pode desvendar o sentido último impresso no mundo e na sua própria vida pela sabedoria de Deus. Mas, por que a pregação é loucura? Porque anuncia uma loucura, algo de totalmente inesperado, quase que ilógico; uma realidade que subverte totalmente nossas expectativas: “Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca da sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios, é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,22). Está aqui o motivo da loucura da pregação: ela nos anuncia um Deus Salvador crucificado: um impotente, um morto, um derrotado, um fraco, um Jesus de Nazaré pobre, homem concreto, de vida concreta, num tempo determinado, numa determinada cultura, nascido e vivido e morrido num povinho sem expressão nem humana sabedoria! Loucura pura: improvável, ilógico, repulsivo à nossa cômoda razão teórica e sistematizada em nosso proveito e à nossa medida! A pregação anuncia algo que é inesperado e humanamente inaceitável: um Deus que não dá segurança, que não parece sábio nem forte, um Deus que não sabe Se impor…
Observe bem, Leitor: os judeus procuram segurança em sinais – sinais como os do Antigo Testamento (“Que sinal realizas, para que vejamos e creiamos em Ti? Que obra fazes?” – Jo 6,30), os gentios procuram segurança na lógica, de modo a satisfazer suas expectativas. Como Deus responde? De modo escandaloso: apresenta-nos o Seu Filho Jesus crucificado, um contrassinal, uma realidade totalmente ilógica! E nos desafia a crer, a nos abandonarmos, a nos jogarmos no Crucificado, garantindo-nos que Ele, Jesus, o Homem da Cruz, é poder de Deus mais forte que todos os sinais do Antigo Testamento, é sabedoria de Deus mais sábia que toda a lógica e raciocínio da pura razão humana entregue aos seus arrazoados, probabilidades, conveniências e limites.
É belo, não é? A questão é que também eu procuro sinais na minha vida, sinais nos quais possa ancorar minha fé… Procuro as razões, as causas, os motivos e nem sempre encontro a lógica das coisas, nem sempre consigo compreender os modos de Deus, nem sempre consigo divisar Seus caminhos nos meus caminhos e Sua lógica no traçado da minha existência… E vem o escuro, e vem a incerteza, e vem o medo, e vem o sentimento de vertigem, de estar suspenso no nada… E suspenso, como eu, só tenho Ele, o Crucificado; como tábua à qual me sustentar, só tenho aquela, a cruz do Senhor!
Não! A cruz é escandalosa! A cruz não deixa ninguém em paz! Ela nos revela a lógica de Deus que não é a nossa! “Quem acreditou naquilo que ouvimos, e a quem se revelou o braço do Senhor?” (Is 53,1) – já Isaías profeta perguntava admirado, ao falar do Servo Sofredor! Exaltamos a santa cruz na liturgia; quão difícil acolhê-la na vida! Compreendemos sua profundidade, seu poder e sabedoria ao meditar nos mistérios do Senhor; quão difícil de acolhê-la quando nos deparamos com ela nos caminhos da existência! Cruz! Cruz bendita! Cruz apavorante! Cruz redentora! Cruz luminosa na mais profunda escuridão! Cruz que eu desejo evitar, cruz que é meu consolo! Cruz que eu não compreendo, cruz que é luz fulgurante que me faz enxergar e compreender as coisas… “Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens!” (1Cor 1,25). Mas, para descobrir isto é preciso jogar-se na cruz, é preciso passar pela porta estreita da cruz, é preciso dar crédito mais ao que ouvimos da pregação do que aos raciocínios da nossa razão e ao instinto de busca de segurança nos sinais que nos trazem certezas…
Vamos, irmão Leitor, meu companheiro de loucura, meu amigo de fraqueza! Vamos, digamos: Nós Vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, e Vos bendizemos, porque pela Vossa santa Cruz remistes o mundo!
Mistério da cruz, realidade que sintetiza toda a lógica de Deus! Deseja conhecer o pensamento do Altíssimo? Deseja saber como Ele age, como pulsa o Seu coração? Então, crave os olhos e o coração na cruz: ali está tudo!
A cruz é a fresta pela qual se pode ver o Infinito. A cruz é a porta estreita pela qual se passa até o Reino dos Céus. A cruz é a arvora na qual se pode colher o Fruto da vida – quem Dele come não morrerá para sempre.
Que nos revela a cruz?
O quanto nós caímos, o quão baixo o ser humano desceu… Vê, meu Irmão, aquele Homem de dores, desfigurado, feito farrapo humano? Sou eu, é você, é a humanidade inteira entregue a si mesma e ao seu pecado.
Vê aquele Desprezado, abandonado pelos Seus? É a mãe que sofre pelo seu filho perdido, é o drogado, são os filhinhos que perderam a mãe em morte prematura, é aquele ali caído na vida, injustiçado. Aquele na cruz é o mendigo sem nome, o pisado e oprimido pela existência e a maldade humana. Aquele da cruz está na situação de penúria dos hospitais, das favelas, das casas de lona e papelão. O Crucificado está deformado pela droga, desfigurado pela bebida e pela depravação…
Ali, naquele Homem de dores estão todas as dores, todos os absurdos da vida, todas as perguntas sem resposta que a existência nos joga na cara…
Cruz! Espantosa cruz! Olhe para ela, encare-a, recorde todo o mal, toda dor, todo sofrimento, toda injustiça, toda miséria, todo absurdo… Recorde tudo isso, mas olhando para cruz e escutando: “Ele não tinha mais figura humana e Sua aparência não era mais a de um homem… Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens, homem sujeito a dor, familiarizado com o sofrimento… Eram nossos sofrimentos que Ele levava sobre Si, nossas dores que Ele carregava. O castigo que havia de trazer-nos a paz caiu sobre Ele. Sim, pelas Suas feridas fomos curados” (Is 52,14; 53,2b-3-4a.5b)
Que mistério é a cruz! Quão tremenda é a cruz! Nela se reflete o que nos tornamos, o que o mundo se tornou! Aquele que contempla a cruz vê o mundo com toda a sua crueza, com toda a sua dureza, com todas as suas perguntas, com todos os seus desafios… Cruz que nos ensina, cruz que nos abre os olhos, cruz que nos revela a realidade em toda a sua crueza. Cruz de fraqueza, cruz de força; cruz de loucura e desespero, cruz de sabedoria e esperança!
Nós Vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, e Vos bendizemos porque pela Vossa santa Cruz remistes o mundo!
Ah! Que a cruz não é desespero – “Ave crux, spes unica!”
“Salve, ó cruz, única esperança!”
Olhe, meu Leitor, para a cruz!
Quem nela está cravado? Quem é o Homem de dores, imagem da humanidade ferida e adolorada?
É Ele, o Santo, o Eterno Filho do Eterno Pai! O Homem de dores é o Filho único, o Filho amado: “Este é o Meu Filho amado, em Quem Me comprazo!” (Mt 3,17). O Dileto, Aquele em Quem repousa todo o Amor do Pai, em Quem descansa o Espírito de Amor. E, no entanto, “Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu Filho único para que todo aquele que crer não pereça, mas tenha a Vida eterna!” (Jo 3,16). Mistério, mistério de amor! Mistério de esperança! O mundo é cruel, o mundo é absurdo, o mundo está perdido: olhe a cruz e veja! O mundo é envolvido pelo amor do Pai, o mundo é um poema de amor que transforma a dor e a morte em vida e esperança, o mundo está encontrado e salvo no amor que o Pai nos deu pelo Seu Filho crucificado: olhe a cruz!
É verdade: na cruz aparece a miséria do mundo com toda a sua rudeza; na cruz aparece até onde o homem pode ir na sua loucura, de louco até matar Deus e cair no desespero da falta de sentido! Na mesma cruz aparece até onde Deus pode ir no Seu amor pelo mundo, pela humanidade, até onde Deus nos leva a sério, até que ponto Ele está disposto a nos procurar: até a cruz! Olhe a cruz!
Cruz bendita! Única esperança! Cruz bendita! Em ti se encontra toda a verdade sobre o homem e toda a verdade sobre Deus! Em ti o Pai entregou o Filho num Espírito eterno; em ti o Filho entregou o Espírito ao Pai! Em ti o Amor eterno mostrou-Se no nosso mundo, em ti, santíssima e gloriosa cruz, o amor de Deus nos apareceu, o Coração da Trindade nos foi revelado!
Cruz que dá sentido às minhas procuras, que esclarece minhas dúvidas, que ergue minhas quedas, que aquieta meu coração! Cruz que é repouso no caminho, que é certeza nas incertezas da existência! Por tudo isto, meu Irmão Leitor, temos que dizer como o Apóstolo: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo!” (Gl 6,14) Então, quando vierem os apertos da vida, quando as lapadas da existência estalarem nas nossas costas e fizerem gemer nosso coração, olhando a cruz, diremos, sem nos quebrar, sem vacilar: “Eu trago em meu corpo as marcas de Jesus!” (Gl 6,17). Eis a graça, eis a força, eis a sabedoria que provêm da santa cruz!
Nós Vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, e Vos bendizemos, porque pela Vossa Santa Cruz remistes o mundo!
Dom Henrique Soares da Costa, Bispo Auxiliar de Aracaju/SE – Blog “Visão Cristã” (http://costa_hs.blog.uol.com.br/)