Caro leitor amigo, deixo-vos este texto, retirado do blog “Visão Cristã”, de Dom Henrique Soares, Bispo Auxiliar de Aracaju.
O texto, datado de 1980, é de autoria do Beato João Paulo II, e é um verdadeiro tesouro sobre o significado da Eucaristia!
Pensemos nisto todas as vezes em que estivermos na Santa Missa…
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Eucaristia: Sacrifício Sagrado!
É com o que é essencial e imutável que está intimamente ligado o caráter de “sacrum” da Eucaristia, ou seja da ação santa e sagrada. Santa e sagrada, porque nela está continuamente presente e age Cristo, o “Santo” de Deus, Aquele que “Deus ungiu com o Espírito Santo”, “consagrado pelo Pai” para dar livremente e de novo tomar a sua vida, o “Sumo Sacerdote” da nova Aliança.
É Ele, de fato, que, representado pelo celebrante, faz o seu ingresso no santuário e anuncia o seu Evangelho; é Ele que “é o oferente e o oferecido, o consagrante e o consagrado”. Ação santa e sagrada porque é constitutiva das sagradas Espécies, de “Sancta sanctis”, isto é, de coisas santas — Cristo, o Santo — dadas aos santos, como cantam todas as liturgias do Oriente, no momento em que se eleva o Pão eucarístico para convidar os fiéis para a Ceia do Senhor.
O “Sacrum” da Missa não é, pois, uma “sacralização”, ou seja, um acrescentamento do homem à ação de Cristo no Cenáculo, uma vez que a Ceia da Quinta-Feira Santa foi um rito sagrado, liturgia primária e constitutiva com a qual Cristo, empenhando-se em dar a vida por nós, celebrou sacramentalmente, Ele próprio, o mistério da sua Paixão e Ressurreição, coração de todas as Missas.
O “Sacrum” da Missa é uma sacralidade instituída por Ele, Cristo. As palavras e a ação de cada um dos Sacerdotes, às quais corresponde a participação consciente e ativa de toda a assembleia eucarística, são eco das palavras e da ação da Quinta-Feira Santa.
O Sacerdote oferece o Santo Sacrifício “in persona Christi”, o que quer dizer “em nome”, ou então “nas vezes” de Cristo. “In persona”: isto é, na especifica e sacramental identificação com o “Sumo e Eterno Sacerdote”, que é o Autor e o principal Sujeito deste seu próprio Sacrifício, no que não pode, na verdade, ser substituído por ninguém. Só Ele somente Cristo — podia e sempre pode ser verdadeira e efetivamente “propiciador pelos nossos pecados; e não só pelos nossos, mas também pelos do mundo inteiro”. Somente o Seu sacrifício — e o de mais ninguém — podia e pode ter “valor propiciatório” diante de Deus, da Trindade e da sua transcendental santidade.
A tomada de consciência desta realidade lança uma certa luz sobre o carácter e sobre o significado do Sacerdote-celebrante; este, ao perfazer o Santo Sacrifício e ao agir “in persona Christi”, é — de um modo sacramental e ao mesmo tempo inefável — introduzido e inserido nesse estritíssimo Sacrum, ao qual o mesmo Sacerdote, por sua vez, associa espiritualmente todos os participantes na assembleia eucarística.
A um tal “Sacrum”, atuado sob formas litúrgicas variadas, pode faltar algum elemento secundário; mas não pode, de modo nenhum, estar desprovido da sua sacralidade e sacramentalidade essenciais, porque queridas por Cristo, e transmitidas e verificadas pela Igreja. Um tal “Sacrum” não pode sequer ser instrumentalizado para outros fins. O Mistério eucarístico, disjunto da própria natureza sacrifical e sacramental, deixa simplesmente de ser tal. Ele não admite qualquer imitação “profana”, a qual se tornaria muito facilmente (se não mesmo como regra) uma profanação. É preciso recordar isto sempre, e sobretudo no nosso tempo, talvez, quando observamos uma tendência para cancelar a distinção entre o “sacrum e o “profanum”, dada a geral e difundida tendência (pelo menos em certas partes) para a “dessacralização” de todas as coisas.
Em tal conjuntura a Igreja tem o particular dever de assegurar e corroborar o “sacrum” da Eucaristia. Na nossa sociedade pluralista, e muitas vezes deliberadamente secularizada, a fé viva da comunidade cristã — fé consciente também dos próprios direitos em relação a todos aqueles que não compartilham a mesma fé — garante a este “sacrum” o direito de cidadania. O dever de respeitar a fé de cada um é concomitante e correlativo ao direito natural e civil da liberdade de consciência e de religião.
A Eucaristia é, acima de, tudo, um Sacrifício: sacrifício da Redenção e, ao mesmo tempo, sacrifício da nova Aliança, como nós acreditamos e claramente professam as Igrejas do Oriente: “o sacrifício hodierno — afirmou há alguns séculos atrás a Igreja Grega — é como aquele que um dia ofereceu o Unigênito Verbo Encarnado; e é (hoje como então) por Ele oferecido, sendo o mesmo e único Sacrifício”.
Por isso, e precisamente com o tornar presente este único Sacrifício da nossa Salvação, o homem e o mundo são restituídos a Deus por meio da novidade pascal da Redenção. E uma tal restituição a Deus não pode vir a falhar: ela é fundamento da “nova e eterna aliança” ‘de Deus com o homem e do homem com Deus. Se viesse a faltar uma tal restituição, dever-se-ia pôr em questão quer a excelência do sacrifício da Redenção, o qual no entanto foi perfeito e definitivo, quer o valor sacrifical da Santa Missa. A Eucaristia, por conseguinte, sendo verdadeiro sacrifício opera esta restituição a Deus.
Daqui se segue que o celebrante, enquanto ministro daquele Sacrifício, é o autêntico Sacerdote, que opera — em virtude do poder específico da sagrada Ordenação — um verdadeiro ato sacrifical que reconduz os seres a Deus. Por outro lado, todos aqueles que participam na Eucaristia, sem sacrificar como o celebrante, oferecem com ele, em virtude do sacerdócio comum, os seus próprios sacrifícios espirituais, representados pelo pão e pelo vinho, desde o momento da apresentação destes ao altar.
Um tal ato litúrgico, efetivamente, solenizado por quase todas as liturgias, “tem o seu valor e o seu significado espiritual”. O pão e o vinho tornam-se, em certo sentido, símbolo de tudo aquilo que a assembleia eucarística é portadora, de si mesma, em oferta a Deus, e que oferece em espírito.
A consciência do ato de apresentar as ofertas deveria ser mantida durante toda a Missa. Mais ainda, ela deve ser levada à plenitude no momento da consagração e da oblação “anamnética” (“Celebrando, pois, a memória…”), como o exige o valor fundamental do momento do Sacrifício. Parece ser útil retomar aqui algumas expressões da terceira Oração eucarística, que manifestam particularmente o caráter sacrifical da Eucaristia e conjugam a oferta das nossas pessoas com a de Cristo: “Olhai benigno para a oblação da Vossa Igreja: vede nela a Vítima que nos reconciliou convosco; e fazei que, alimentando-nos do Corpo e Sangue de Vosso Filho, e cheios do Seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito. O mesmo Espírito Santo faça de nós uma oferenda permanente”.
Um tal valor sacrifical é também expresso já em todas as celebrações, pelas palavras com que o Sacerdote conclui a apresentação das oferendas, ao pedir aos fiéis para orarem a fim de que “o meu e vosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso” Tais palavras têm um valor comprometedor, na medida em que exprimem o caráter de toda a Liturgia eucarística e a plenitude do seu conteúdo tanto divino como eclesial.
Todos aqueles que participam com fé na Eucaristia se dão conta de que ela é “Sacrificium”, ou seja uma “Oferta consagrada”. Com efeito, o pão e o vinho, presentes no altar e acompanhados da devoção e dos sacrifícios espirituais dos participantes, são finalmente consagrados, de tal modo que se tornam verdadeira, real e substancialmente o Corpo entregue e o Sangue derramado do próprio Cristo.
Assim, em virtude da consagração, as Espécies do pão e do vinho tornam presente, de modo sacramental e incruento, o Sacrifício cruento e propiciatório oferecido pelo mesmo Cristo na Cruz ao Pai pela salvação do mundo. Somente Ele, de fato, entregando-Se como vítima propiciatória, num ato de suprema doação e imolação, reconciliou a humanidade com o Pai; unicamente mediante o Seu sacrifício foi “cancelado o documento escrito contra nós, com as suas disposições a nós desfavoráveis”.
Para tal sacrifício sacramental, as ofertas do pão e do vinho, acompanhadas da devoção dos fiéis, prestam todavia uma sua contribuição insubstituível, uma vez que, com a consagração sacerdotal, elas se tornam as sagradas Espécies. Isto torna-se patente no comportamento do Sacerdote durante a Oração eucarística, sobretudo durante a consagração, e depois quando a celebração do Santo Sacrifício e a participação no mesmo são acompanhadas da consciência de que “o Mestre está ali e te chama”. Este chamamento do Senhor, a nós dirigido mediante o Seu Sacrifício, abre os corações, a fim de que estes — purificados no mistério da nossa Redenção —, se unam a Ele na Comunhão eucarística, que confere à participação na Missa um valor maturo, pleno e comprometido da humana existência: “a Igreja deseja que os fiéis, não somente ofereçam a vítima imaculada, mas que aprendam também a oferecer-se a si mesmos; e assim vão aperfeiçoando de dia para dia mais, por meio de Cristo Mediador, a sua união com Deus e com os irmãos, para que Deus finalmente seja tudo em todos”.