Teólogos e pregadores dos séculos seguintes elaboraram reflexões de extraordinária beleza e profundidade sobre esta primeira etapa da vida de Jesus, partindo da fé dos cristãos: nesse menino, o próprio Deus veio ao encontro da humanidade e assumiu nossa condição frágil e precária, para redimi-la e dar-lhe sentido e perspectiva de futuro. A Liturgia católica do Natal ainda conserva algumas dessas jóias, que o pensamento teológico lapidou naquela época: “ó Deus, nesta noite santa, o céu e a terra trocam seus dons… No momento em que vosso Filho assume a nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade!”
São Nicolau, um bispo do 4º século nascido em Mira, na atual Turquia, e cujo sarcófago está conservado na catedral de Bari, no sul da Itália, compreendeu isso muito bem: na festa do Natal, saía pelas ruas distribuindo presentes aos pobres, sobretudo às crianças. Queria, assim, compartilhar a festa e a alegria com todos porque o Natal de Jesus era um imenso presente de Deus para a humanidade inteira! Talvez nasceu aí a tradição dos presentes de Natal e da festa contagiante, que também hoje se faz.
Na Idade Média, São Francisco de Assis não se cansava de contemplar o “sublime mistério” do Natal: o Grande Deus veio a nós na simplicidade e na fragilidade de uma criança! Alguém poderia ter imaginado algo assim?! Ninguém mais precisa ter medo de se aproximar do Eterno! Os braços estendidos do menino são o abraço de Deus, que acolhe a todos com infinita ternura! Francisco, poeta e cantor da beleza, quis que a cena do Natal de Jesus, narrada nos Evangelhos, fosse percebida concretamente e “criou” o presépio, com a ambientação e os figurantes dos relatos bíblicos sobre o nascimento de Jesus. A tradição dos presépios no Natal espalhou-se rapidamente pelo mundo cristão.
Os tempos modernos deram-se conta de que o Natal tinha um apelo comercial muito bom e vendia bem! Natal virou coisa para comprar! E para promover melhor o seu consumo, foi criado um garoto-propaganda, chamado Papai Noel, o “bom velhinho”, de barbas brancas, botas, roupão vermelho e gorro de lã… Alguma coisa nele ainda lembra o bispo São Nicolau, de outros tempos, que distribuía presentes de verdade! Papai Noel saiu da fantasia, talvez de trenó puxado por renas imaginárias, lá dos espaços nórdicos, onde faz frio nesta época do ano. Mas deu-se muito bem nos trópicos também… Que importa um pouco de suor debaixo das pesadas roupas invernais? Doce fantasia, que encanta crianças e também agrada a adultos!
Natal se tornou a festa de Papai Noel. E o menino Jesus, onde ficou? Não era dele a festa? Será que o “bom velhinho” – hô-hô-hô -, na sua pachorra, vai conseguindo o que Herodes não conseguiu com sua ira – eliminar o menino da cena? Presépio? Em seu lugar, uma árvore enfeitada de desejos coloridos; duendes e bruxas, em lugar do menininho de braços estendidos; bichinhos da Disney em lugar dos pastores de Belém e suas ovelhas; e uma infinidade de pacotes e de doces em vez do ouro, incenso e mirra, oferecidos pelos reis magos ao menino Jesus!
Pois é… quase tudo como no começo! Quando Maria estava para dar à luz, José, muito aflito, batia de porta em porta e procurava um lugar em Belém para que o Filho de Deus pudesse nascer entre os homens. São Lucas informa apenas: “não havia lugar para eles”. Por isso, Jesus veio ao mundo num abrigo para animais, fora da cidade. Na cidade não havia lugar para ele. E, no entanto, continua atual o anúncio do anjo aos pastores nos campos gelados de Belém: “não tenhais medo! Eis que vos anuncio uma boa notícia, e será boa também para todo o povo! Hoje nasceu para vós um salvador, que é o Cristo, Senhor”! Mais atual do que nunca!
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Card. Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo/SP
Publicado em O ESTADO DE SÃO PAULO, ed. de 10/12/2011